Quando as dores do trauma são sentidas na pele
A década era 1920 e foi no voluntariado, em meio a uma guerra, que Elisa buscou refúgio para as dores emocionais e físicas que nunca pensou sentir: as do abuso dentro do próprio casamento. Em Outro Plano, a escritora e dermatologista Cristiane Barausse guia o leitor pela jornada da jovem mulher que, na intenção de aliviar o peso do trauma, vai encontrar lar na sororidade.
Médica ginecologista, a protagonista se une à equipe de um hospital de campanha para atender soldados feridos na guerra. Ela aceita o desafio na tentativa de fugir e esquecer os horrores vividos com o marido Oto, que a violentou dentro da própria casa. O trauma, junto da repulsa e raiva, ocasiona a dermatilomania, transtorno obsessivo-compulsivo que provoca vontade incontrolável de arranhar, morder, beliscar e abrir feridas na pele.
Enquanto trabalha intensamente no cuidado de feridos e tenta entender a si, Elisa lida com o machismo e a aversão ao toque masculino, o que dificulta relações interpessoais e profissionais. No entanto, encontra apoio em mulheres com histórias de resistência, como a comandante Ludmila Pavliche, inspirada na ucraniana Lyudmila Pavlichenko, heroína da União Soviética, e Ana, enfermeira afetuosa, que suporta a distância da filha para poder trabalhar.
Foi em um desses dias difíceis, de muitas mortes, gritos de dor e casos complicados
que nós duas voltávamos juntas para os nossos dormitórios. Em dias assim andávamos
em silêncio lado a lado, gratas por não estar ouvindo gritos, caos, gemidos e lágrimas.
Ao entrarmos no casarão onde ficavam os quartos, vínhamos tão quietas que o solado
baixo de nossos coturnos fazia toc-toc no assoalho de madeira de carvalho como se
estivéssemos usando salto alto. (Outro Plano, p. 61)
Cinquenta e dois capítulos de leitura fluída marcam esta jornada que atravessa questões femininas fortes: sexismo, consequências das relações abusivas, estupro dentro do matrimônio, e também empoderamento, sororidade, autoconhecimento e o papel social da mulher em todas as épocas.
A capa feita à mão em tinta aquarela pela designer Thais Ribas representa não só as feridas na pele da protagonista, mas traz o olhar de Cristiane Barausse para a psicodermatologia. Ela leva este recorte da profissão para a literatura inspirada por um caso especial: o da irmã, que sentiu a falta de atenção dos médicos à causa emocional por trás de uma doença de pele. Com isso, a autora tomou para si a missão de oferecer suporte às mulheres que enfrentam situações semelhantes, seja no consultório, na literatura ou redes sociais.
Sobre a autora: Cristiane Barausse é médica formada pela PUC – PR, com residência em Dermatologia pela Santa Casa de misericórdia de Curitiba. Natural de Ponta Grossa, foi criada pela mãe e avó ao lado da irmã, três mulheres fortes responsáveis por fazerem-na se apaixonar pelo empoderamento feminino. Na literatura, ela encontrou uma forma de retratar as mulheres que chegam ao seu consultório com doenças similares à da protagonista, com causas relacionadas à saúde mental. Em Outro Plano, seu romance de estreia, une a psicodermatologia com temas essenciais para debate, como abuso, estupro e questões de gênero.
Fonte: Vida no Campo